Qual achais que seria um bom primeiro livro para um novo clube de leitura? – perguntei na lista de correios.
A encomendação das almas, de João Aguiar – foi a instantânea resposta de V.
Hoje o clube de leitura da associação Cultura do País (Lugo) inicia o seu andamento com este romance.
Gonçalo Nuno, septuagenário incontinente, empresário de importação-exportação, monárquico e de ascendência fidalga, deixa Lisboa pola velha casa familiar de Poiais de Santa Cruz. Esposa, filhos e noras tentam convencê-lo para que regresse à capital.
Zé da Pinta, 15 anos, tido por simples de espírito e atrasadinho, é enviado polos pais para Poiais de Santa Cruz, onde trabalhará na taberna do tio Albertino. Além de atender os fregueses, Zé terá de compensar – sem resistência nem demasiado entusiasmo – as carências sexuais da tia Genoveva.
O encontro entre Gonçalo Nuno e Zé da Pinta acontece no rebordo da Fonte Velha, agora seca, mas onde antigamente uma moura se penteava. A fonte é ameaçada polos planos de construção do GCDRPSC, Grupo Cultural Desportivo e Recreativo de Poiares de Santa Cruz.
Pouco mais contarei do enredo, que envereda pola inspirada amizade do velho e o moço.
O passatempo de Zé da Pinta é olhar para o céu; a sua mais notória competência profissional, desmontar aparelhos e montá-los com uma nova função totalmente inútil. Por exemplo, um aspirador é transformado numa máquina de cortar palitos.
A voz do autor insurge-se assim contra o Culto da Máquina, mas não em jeito de manifesto luddita nem de sisuda crítica da aniquilação do homem polo industrialismo, como a do alemão Günther Anders.
Galega e portuguesmente, Aguiar revolta-se com uma história retranqueira e um Zé da Pipa que desconhece o significado das palavras “individualidade”, “consciência” ou “fenómeno”. Tudo é contado com frases leves e parágrafos em regueifa uns com os outros – ao jeito de fregueses no balcão de uma taberna.
Um mito popular de Trás-os-Montes desencadeia uma sabotagem nas engrenagens do livro. O Secular (ou Escolar) das Nuvens produz as tempestades e chega encoberto na nuvem mais escura e medonhenta. O livro descreve assim a sua geração:
Para formar um Secular das Nuvens mata-se um homem, mas tem de ser devagar e por partes. Deve-se começar pelos pés. Corta-se a carne em pedaços pequenos como se fosse para fazer chouriços. Tem de se cortar tudo até à cabeça sem perder nada. Mete-se tudo dentro de uma tina, onde hão de meter-se também os temperos próprios para chouriço. Ao fim de algum tempo, sai o Secular das Nuvens e vai cumprir o seu Fadário.
Mudando de assunto: receio que os docentes galegos andemos no Fadário de fazer-nos chouriços nos neurónios, com tanto curso sobre as TIC e tanto quadro interativo de colorins a substituir os/as colegas que irão para o desemprego.
Que remédio haverá para tantíssima aniquilação da gente?
Nada sei: a mim dá-me, como ao Zé da Pinta, por passear e pasmar olhando para os céus de Lugo.
Mas não darei a volta à muralha, nem usufruirei da fácil recompensa do miradouro do Parque Rosalia. Para transformar esta tarde de avaliações de setembro numa máquina de cortar palitos, o que cumpre é atravessar a ponte da N-540 e ver a chegada por Adai de um Escolar das Nuvens bom – mijando sobre o Minho por causa de alguma incontinência não prevista no orçamento.
E assim enchoupado, assistir à primeira reunião do clube de leitura, com a encomendação das tristes – ó tristes almas – na mochila.